Ramachrisna Teixeira

Astrônomo Ramachrisna Teixeira concede entrevista ao Planetário

Entre os assuntos abordados, o professor nos fala sobre os estudos das galáxias e a divulgação da Astronomia

Texto e fotos: Michele Martins

No ano em que o Planetário completa 50 anos, publicaremos uma série de entrevistas com personalidades da área de Astronomia, de referência local e nacional. Iniciamos esta série com uma conversa com o professor da Universidade de São Paulo (USP), Ramachrisna Teixeira. O professor é Secretário Geral da Sociedade Astronômica Brasileira, membro efetivo da União Astronômica Internacional e membro ativo do Gaia Data Processing and Analysis Consortium (DPAC), o maior consórcio de pesquisadores que atualmente se dedicam à observação espacial. Com a autoridade de quem dedicou toda a carreira às pesquisas, ao ensino e à divulgação da Astronomia, Ramachrisna Teixeira nos explica sobre as pesquisas que tem desenvolvido e as novas perspectivas dessa área de conhecimento.    

Confiram!

 

O senhor tem dedicado sua carreira aos estudos de Astrometria.  Como podemos entender em que consiste esse campo de estudos?

A base sob a qual repousa o conhecimento astronômico é a observação. Quando observamos um astro, medimos só duas grandezas: uma é a intensidade da luz que vem do astro e outra é a direção de onde vem essa luz. Astrometria é a área da Astronomia que, se ocupa dessa medida da direção de onde vem a luz, que chamamos de posição, e as variações de tempo dessa posição que são pautadas pelos movimentos dos astros e do observador.

 

É possível, a partir desses estudos, contar a história das galáxias?

Se você busca o Sistema Solar ou as galáxias para saber quais foram suas origens e como vão terminar, temos de levar em conta os aspectos cinemáticos, quer dizer, dos movimentos. No caso dos planetas, cometas e asteroides, tudo isso tem de entrar na sua conta para tentarmos entender como se originaram. Se eu quiser contar a história de uma galáxia eu preciso conhecer os movimentos das estrelas. Em outras palavras, eu preciso saber de onde as estrelas vieram, onde nasceram, como se movimentam e para onde elas vão. De todas as grandezas que lidamos na Astronomia a mais importante é a distância dos astros. Porque tudo que observo é aparente. Para transformar o que se observa em referências absolutas, é preciso conhecer a distância. Quando olho daqui, por exemplo, vejo que o Sol é quase do tamanho da Lua. Mas esse não é o tamanho real, é aparente. A partir do momento em que eu conheço a distância, eu consigo calcular o tamanho real do Sol, da Lua e concluir que o primeiro é maior que o segundo. Se eu vejo um astro se deslocando no céu, não sei dizer a velocidade. Eu posso saber quantos graus o objeto se desloca em certa unidade de tempo, mas para transformar em quilômetros por segundo eu preciso conhecer a distância. Essa é a grandeza mais importante que temos e é muito difícil calcular essas distâncias porque os astros estão muito longe uns dos outros. Então, existem várias estratégias para esse cálculo. A primeira delas é a que calibra todas as outras: é a variação da posição de uma estrela no céu, por causa do movimento da Terra ao redor do Sol. Por causa desse movimento, o ponto de vista vai mudando constantemente ao longo do ano. Como consequência, a estrela descreve um caminho em forma de elipse no céu e o tamanho dessa elipse é maior quanto mais perto da Terra estiver a estrela e menor quanto mais distante. Ao medir o tamanho dessa elipse conseguimos medir a distância. Então, a medida da grandeza mais fundamental da Astronomia, chamada de paralaxe estelar, é a medida da posição das estrelas em instante diferentes. E é isso que me permite calibrar outros métodos para ir muito mais longe em relação às distâncias no espaço interestelar.

 

Hoje em dia, como são realizadas essas medições?

Ainda se faz muita medida astrométrica com telescópios. Eu mesmo observo estrelas de um telescópio do Chile com intuito de determinar distâncias e movimentos de alguns grupos de estrelas que me interessam. Mas essas observações são muito limitadas por causa da atmosfera e por causa também de efeitos sobre o tubo do telescópio. Quando as observações são realizadas a partir do solo, não conseguimos ver o céu todo, só a metade dele. Para ver todo o céu precisaríamos de dois telescópios, um em cada hemisfério. O que é um problema por serem dois instrumentos diferentes, que depois teríamos de combinar os dados coletados de ambos. É possível fazer isso, mas é melhor lançarmos um satélite que observa o céu todo conseguindo uma melhor precisão e abundância de dados.

 

O senhor participa da cooperação internacional Gaia, em que consiste essa cooperação?

A missão espacial Gaia começou a ser pensada no final dos anos 1990, até que em 2006 obtivemos a configuração tal qual é ainda hoje, cujo foco principal é o astrométrico, para realizar medições paralaxe. A ciência por traz disso tudo visa contar a história da Galáxia como nunca foi possível antes. Medindo a distância, a posição, os movimentos, o brilho, a intensidade e a cor das estrelas com uma precisão muito grande e uma qualidade fantástica. Um satélite foi lançado em 2013. Ele não aponta para determinado objeto, ele escaneia o céu o tempo todo. A cada dois meses ele completa uma varredura. E a filosofia da missão espacial Gaia é colocar os dados nas mãos dos cientistas do mundo inteiro ao mesmo tempo. Não há nenhum grupo privilegiado que use esses dados antes dos outros. Tivemos uma primeira leva de dados publicados em setembro de 2016 e uma segunda publicada em abril de 2018. Essa segunda leva de dados mudou revolucionariamente a base de dados sob a qual a Astronomia tem repousado. Até o ano de 2018, conhecíamos razoavelmente bem a distância de 40 mil estrelas. Esse número agora pulou para 100 milhões de estrelas, que engloba todos os tipos de estrelas. As estrelas que calibram outros métodos de determinação de distância estão abundantemente dentro destes 100 milhões. Então, tudo que passamos a falar sobre os astros agora pode ser feito com muito mais propriedade, agora há dados de maior qualidade.

 

professor ramachrisna teixeira

"Temos dados nas mãos para fazer tudo o que já foi feito de uma maneira muito mais realista e precisa, com mais chances de descobrir coisas novas", afirmou o astrônomo sobre as perspectivas no campo da Astronomia

 

Como tem sido esta sua participação?

O satélite não manda imagem, ele manda números. Existem cerca de 400 pessoas entre pesquisadores, engenheiros e técnicos que vão transformar esses números em informação científica. Estão divididos entre sete grupos, subdivididos em grupos menores que se ocupam em estudar algum aspecto dessas informações. Eu participo de um grupo no qual estudamos os objetos extensos. A missão toda foi concebida para observar estrelas, que ao observarmos daqui são pontos de luz. Mas outros objetos, como as galáxias não são pontos de luz, então todo o tratamento é diferente. O grupo ao qual participo está voltado recuperar a observação das galáxias e medir o que for possível, como o brilho que emitem, o raio que possuem, ou detalhes que poderiam se perder.

 

As informações coletadas até o momento já geraram aplicações práticas?

 Quando os dados foram divulgados em abril de 2018, teve grupos de cientistas que se hospedaram em hotéis reunidos e esperaram a liberação dos dados para começarem a trabalhar. A ideia inicial, que persiste até agora, é refazer com dados de excelente qualidade o que já tinha sido feito. Mas nesse período vão surgindo coisas novas. Em janeiro de 2020 teremos a terceira leva de dados. Que não vai ampliar muito os números. Em abril foram 1,7 bi de estrelas identificadas. Agora em 2020 serão 1,8 bi de estrelas. O número de estrelas não vai aumentar muito, mas a qualidade das informações vai melhorar. Há novidades como: já sabíamos de estrelas com velocidade muito alta, que poderiam escapar da galáxia de tão alta a velocidade que apresentam. Mas descobrimos agora muitas estrelas com velocidades muito altas, mas que estão entrando em nossa Galáxia (Via Láctea). É preciso saber a origem dessas estrelas, o porquê de estarem entrando, como deixaram as galáxias onde se hospedavam. Tudo isso é um trabalho que está começando. No nosso grupo nos preocupamos com um tipo de objeto que se chama lente gravitacional. Quando observamos um objeto muito distante, que chamamos de quasar, e a luz para chegar na Terra passa muito próxima a outra galáxia nessa galáxia tangencia e desvia a luz pela ação gravitacional. Então, se não existisse a galáxia naquele local, onde você vê a imagem de um objeto como um pontinho de luz, agora podemos ver os seus anéis, duas ou quatro imagens, dependendo da geometria e distância entre os objetos e a Terra. A existência das lentes gravitacionais foi prevista pelo cientista Albert Einstein e algumas já são conhecidas. Como nosso grupo de dedica a este estudo, já ampliamos muito a quantidade de lentes conhecidas usando os dados do projeto Gaia.

 

Os dados do satélite chegam até os cientistas em forma dados numéricos ou por imagens?

Chegam por dados numéricos. Os grupos de cientistas recebem códigos do satélite e transformam esses códigos em informações científicas, como a intensidade, a cor, a posição, o movimento e a distância nas publicações acadêmicas. Essa base de dados, certamente, nos próximos 30 ou 40 anos, os conhecimentos em Astronomia ainda passarão por essa base de dados.

 

Como tem sido a participação dos brasileiros nessa missão espacial Gaia?

Por ser um projeto essencialmente europeu, com satélite lançado pela Agência Nacional Europeia na base de lançamento francesa, são poucos os cientistas não europeus e pouquíssimos brasileiros. Na verdade, somos quatro brasileiros ativos trabalhando. Isso começou quando eu orientava um estudante no doutorado e passamos a estudar uma forma de fazer parte desse projeto. Percebemos que toda a estratégia do projeto foi concebida para transformar a informação científica de objetos pontuais, como as estrelas. Um dos grupos se dedicou a estudar objetos não pontuais, como o nosso Sistema Solar, a partir de outro tratamento das informações. Outro grupo estava se ocupando de identificar as estrelas duplas, que do satélite não é possível separar. O que também não seria uma imagem pontual. Como não tinha ninguém se dedicando às galáxias decidimos ficar com esta parte e a tese desse estudante foi intitulada "Ampliando os horizontes da missão espacial Gaia através das observações das galáxias". A partir daí criamos o nosso grupo e passamos a ser membros ativos do Data Processing Analises Consorcium.

 

A partir desses dados é possível identificar sistemas semelhantes ao nosso Sistema Solar? É de interesse dos pesquisadores buscar por essas semelhanças?

Sim, é nosso interesse encontrar estrelas semelhantes ao Sol, planetas orbitando estrelas quaisquer e, principalmente, os planetas que orbitam estrelas do tipo solar. Não são todos os pesquisadores que estão trabalhando nessa direção, mas os dados do satélite permitem isso e com a próxima leva de dados teremos ainda mais informações com uma precisão melhor. Temos dados nas mãos para fazer tudo o que já foi feito de uma maneira muito mais realista e precisa, com mais chances de descobrir coisas novas. Na ciência é assim, na medida que aumentamos nossa capacidade tecnológica, base de dados e o conhecimento são ampliados, vamos descobrindo o que ainda não sabemos. Os dados estarão disponíveis, mas não sabemos o que poderá ser descoberto. Isso já aconteceu no passado, quando Galieu Galilei criou o telescópio e a Astronomia deu um salto de evolução, quando desenvolveram os relógios mais precisos, com as câmeras digitais e as fotografias também foi outro salto gigantesco para a ampliação dos conhecimentos astronômicos.

 

Em relação às galáxias, quais as informações foram descobertas com o projeto?

As galáxias vão começar a aparecer no catálogo da missão Gaia a partir de 2021. Porque para extrairmos informações científicas precisamos de um certo número de dados que precisam ser combinados e analisados. Pretendemos fornecer informação sobre a intensidade de brilho, dimensão angular da Galáxia, sobre o raio dela, um pouco da morfologia de galáxias que normalmente aparecem minúsculas nas imagens porque estão muito distantes, apesar delas estarem cobrindo todo o céu quando observamos. Então, teremos informações de milhões de galáxias que hoje não trabalhamos porque ainda não foram observadas.

 

Por muitos anos o senhor integrou um observatório como pesquisador e como gestor. O que mudou ao longo dos anos, em termos de tecnologia e de conhecimentos?

No passado não tínhamos as facilidades de comunicação que temos hoje, então, os observatórios não poderiam ficar distantes dos pesquisadores porque eram eles quem faziam as observações nestes locais. Lá em São Paulo, por exemplo, o Observatório da Universidade de São Paulo (USP) foi construído na cidade de Valinhos- SP. Está lá porque quando a Universidade de São Paulo decidiu comprar os equipamentos, o céu da cidade já era inadequado para observações por causa da poluição do ar e da poluição luminosa. Mas também não poderia ser muito longe da capital. Então, num raio de 100 km, existia um céu relativamente bom para as observações e a prefeitura doou o terreno para a USP construir o Observatório lá. No mundo inteiro isso é comum, na medida em que as cidades crescem, cada vez mais iluminação noturna, o céu vai tornando-se impróprio para as observações. Por outro lado, a tecnologia também se desenvolve e surgem equipamentos melhores, mais sensíveis e, como são equipamentos muito caros, deve ficar onde o céu está reconhecidamente muito bom para observações. Atualmente, a melhor vista do céu está no Chile, para as observações do hemisfério Sul e no Hawai para observações do hemisfério Norte.  O Brasil tem envolvimento em dois telescópios: um é o SOAR, no Chile, no qual teve uma participação em dinheiro e possui uma parte do tempo de noites por ano que é brasileira.

 

Alguns dados podem ser adquiridos por computadores pessoais em qualquer parte do mundo, não é mesmo?

Sim... Com um computador daqui do Planetário da Universidade Federal de Goiás (UFG) é possível ter acesso aos Observatórios do Chile. Remotamente também se pode fazer observações. Os telescópios na Terra hoje estão competindo com os satélites. Eles possuem algumas vantagens sobre os telescópios no solo. Um super telescópio localizado no Chile que é capaz de moldar o espelho dele em tempo real para eliminar efeitos atmosféricos, ou indo para o espaço também é uma possibilidade e a humanidade está usando as duas. Ao longo dos anos os observatórios mudaram. Muitos deles não são utilizados mais para fazer ciência, mas podem se transformar em parques da ciência pra atendimento ao público. E é assim no mundo todo. Creio que as universidades e as prefeituras ainda não perceberam o potencial que existe ali.

 

A Astronomia é uma área que encanta qualquer pessoa e por isso, centros de ciência que abordam essa área são muito visitados em qualquer parte do mundo. No Brasil, o que o senhor acha que ainda falta para que haja uma verdadeira popularização dessa ciência junto à sociedade?

Houve uma melhora nesse sentido no Brasil. Há alguns anos, quando me tornei professor na USP, a extensão e a divulgação das ciências, em geral, não tinha o menor valor. Pelo contrário, era até vista com maus olhos porque, para muitos, quem fazia extensão não era um bom pesquisador. Hoje as universidades e os órgãos financiadores de pesquisa já veem com outros olhos a divulgação e mais pessoas se dedicam a isso. Mas ainda estamos engatinhando. Estamos muito longe de conseguirmos uma divulgação que realmente atinja a grande massa. Longe de conseguirmos alfabetizar cientificamente uma parcela significativa da nossa população. Eu que vivi na Europa, posso dizer que o desnível é muito grande, mas que não é culpa da população. É uma questão de tempo e de investimento em divulgação e na ciência. O que não deve ser considerado um gasto e sim um investimento. Infelizmente, aqui sofremos por questões políticas. Quando que um político vai investir em divulgação científica? Somente quando isso render votos! Além disso, todos têm a consciência que muito do nosso dinheiro foi para o ralo da corrupção. Um dinheiro que poderia ter ido para realizarmos muitas outras coisas. Quem sabe um dia as nossas autoridades acordem e comecem a perceber que os investimentos na educação, no desenvolvimento científico, na alfabetização científica e no desenvolvimento cultural podem diminuir gastos.

 

Fonte: Comunicação Planetário

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